Data máxima vênia: Família, uma pinoia

Imagem gerada por IA.

Você certamente já ouviu a seguinte frase em seu local de trabalho: “Aqui nós somos uma família”. A ideia por trás dessa proposta é que todos sejam unidos e que entendam que, assim como nas famílias, problemas acontecem e que tudo ficará bem se todos agirem com misericórdia. Pois famílias resolvem os seus problemas e não abrem mão de serem famílias.

Eu, porém, discordo fragorosamente desse adágio que, de tão repetitivo, se tornou frugal; eu não tenho uma família fora da minha casa. Local de trabalho é local de trabalho. Cada pessoa é um profissional, alguém que está lá para executar as suas funções e não pode deixar de executá-las.

Já nas famílias as coisas são muito diferentes. A primeira de todas as normas é o vínculo do amor, e há também um senso de pertencimento e proteção. Em famílias não há grupos fechados, clubes exclusivos, nem pessoas melhores do que as outras. É claro que cada um tem o seu papel, mas, mesmo assim, o que dá para um dá para todos.

Por mais que você goste dos seus colegas de trabalho, se afeiçoe a eles e goste de estar junto no mesmo ambiente, tais pessoas não são da sua família, não têm o seu sangue e não se importam com você. Família é sagrado, criação de Deus; profissão é exercício de função, invenção do homem, cuja causa primeira é a remuneração alçada. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, exceto de maneira mínima no que diz respeito às relações humanas.

A sua família não lhe descartaria ao menor sinal de desagrado. Na sua família, você não é substituível, por isso comparações entre exercício laboral e laços de sangue só têm mesmo o potencial para causar confusão. Afinal, se levarmos esse discurso a sério, podemos imaginar que, assim como dito, será feito — e isso não será. Não por indiferença, mas porque, no fundo, todos sabemos que não passa de um discurso socialmente desejável, ainda que essencialmente falso.

Essa é uma daquelas consideradas “mentiras do bem”, uma das várias que sabemos não ter a função de prejudicar, mas de gerar uma certa harmonia psicológica no ambiente e, por isso, é aceita de bom grado. De certa forma, o que se deseja, no fundo, é que todos se tratem com respeito, como seria esperado nas famílias de fato. Ainda assim, não se trata de uma família nem de um ambiente familiar; a tolerância não é a regra. Aliás, a regra é a mãe de todos — não uma mãe complacente e misericordiosa, mas uma mãe rígida, que não admite erros, nem aceita explicações, mas exige obediência irrestrita.

No mundo real, o que está além das teorias e das crenças corporativas é cada um por si. Ninguém gosta de ninguém — pelo menos não a ponto de colocar o outro antes de si mesmo em escala de importância. Indivíduos são indivíduos por uma razão: a sua individualidade inerente. Pessoas que realmente se importam são raras e carregam consigo feridas dessa peculiaridade. Por isso, a maioria apenas emula pelo bem social.

Família é uma pinoia, como diziam os mais velhos! Eu sequer posso chamar todos os meus parentes de família, que dirá pessoas que não me conhecem de verdade e só convivem com a minha parte profissional. Mas, em toda regra, há uma exceção, e é bem possível que, em algum momento da nossa vida, a gente venha a se surpreender positivamente — já que, negativamente, é certo que ocorrerá.

 


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